I. As origens do Estado Moderno: o renascimento
do comércio e da vida urbana através dos burgos, das feiras e das rotas
comerciais
O cenário da Alta Idade Média – dos séculos
V ao X – é o de uma Europa rural, fragmentada em pequenos feudos autônomos,
autossuficientes, com baixa produtividade. A regra na Europa medieval é a fome e o
medo, não há a possibilidade de refeições diárias, e o risco de ataques bárbaros é uma constante. O deslocamento
entre feudos é muito arriscado, e a atividade comercial praticamente
desaparece. A Europa medieval
configura-se em um continente cultural e tecnicamente atrasado.
A produção de alimentos era muito
baixa devido às rudimentares técnicas e aos precários instrumentos agrícolas do
período, limitando o aproveitamento da terra. E como havia um isolamento muito
grande entre as regiões, a convivência social e a troca de informações eram mínimas. As técnicas da produção agrícola não se
desenvolviam. Outro fator de limitava o desenvolvimento da produção era a ausência da palavra escrita para a transmissão e
aprimoramento dos conhecimentos técnicos.
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O isolamento da sociedade medieval foi uma consequência da ruralização gerada pela economia agrícola. |
A
sociedade se apresenta imóvel, dividida em estamentos estáticos (clero,
nobreza, campesinato), com suas respectivas funções (oração, guerra, trabalho).
Esse sistema de castas fixas, sem nenhum mecanismo de ascensão social, é
justificado pela Igreja como um “ordenamento sagrado”: os homens já nasciam
predestinados a cumprir um determinado papel social. Na prática, a posição na
estrutura social é determinada pela posse da terra, que não podia ser comprada,
apenas herdada, segundo os princípios da tradição e da primogenitura (o filho mais velho herda a terra).
O trabalho agrícola era a principal
atividade econômica, sendo os trabalhadores (servos, camponeses, artesãos) os
encarregados das atividades manuais necessárias ao sustento da nobreza e do
clero. O controle da fé e das armas garantia à Igreja e à nobreza o domínio dos
demais grupos. As relações de vassalagem, típicas do sistema feudal, tinham
como base a fidelidade e a dependência mútua: o senhor feudal dependia do
trabalho e dos impostos pagos pelos seus vassalos e servos, e esses últimos
dependiam do uso da terra e da proteção militar do senhor feudal a quem haviam
prestado o juramento de fidelidade (investidura).
A organização política
descentralizada, característica do período, transfere os poderes do Estado para
a pessoa física. Os senhores feudais cumprem o papel do Estado: a queda de Roma
simboliza o desaparecimento físico do Estado, a transferência do poder de Estado para uma pessoa.
Nos últimos anos de existência do
Império romano, surgiu a prática que viria a ser a origem do feudalismo: a
instituição da imunidade. A imunidade era uma concessão do Estado romano
aos patrícios (elite romana); esse instrumento fornecia poderes totais ao patrício nos seus
domínios, ele ficava responsável pela segurança e pela cobrança dos impostos,
que posteriormente deveriam ser repassados a Roma. A queda de Roma e a
instituição da imunidade são os principais responsáveis por essa transferência
de poder do Estado para a pessoa física do Senhor Feudal durante a Idade Média.
O comércio e a vida urbana, que
praticamente haviam desaparecido na Europa medieval, foram – em um processo
lento – ressurgindo a partir do século XI. Esse renascimento foi consequência
do crescimento demográfico, da diminuição das invasões (vikings, muçulmanos,
húngaros) e, principalmente, do intercambio cultural com o oriente. Esse novo
quadro possibilitou a circulação de mercadorias na Europa medieval. Os séculos
XII-XIII serão marcados também pelo reaparecimento da moeda e pela ampliação
das feiras e rotas comerciais.
O mar utilizado para o comércio
marítimo era o Mediterrâneo; o oceano Pacífico ainda não era navegado pelos
europeus. As cruzadas “abriram” o Mediterrâneo e retiraram dos muçulmanos o domínio
exclusivo das suas margens. Não só mercadorias entraram pelo Mediterrâneo, mas
a Peste Negra também. A Peste Negra foi trazida do oriente através de um navio
mercante genovês contaminado. A epidemia era altamente contagiosa, transmitida por
meio da picada da pulga de ratos portadores do bacilo, ou simplesmente pelo
hálito. Na época, não era conhecido nenhum remédio ou tratamento eficaz para combatê-la.
Mais de um terço da população europeia morreu em apenas três anos, entre 1347 e
1350. A
Peste serviu para desacreditar a ideologia católica e mostrar a necessidade de
aprimoramento científico e técnico, colaborando, ainda, com o despovoamento dos
campos e a decadência do feudalismo.
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Peste Negra: a maior epidemia da história |
O que alterou o quadro da Alta Idade
Média, incapaz de gerar excedente que permitisse a realização do comércio, foi
o contato da Europa com uma civilização cultural e tecnicamente superior a ela
naquele momento: a civilização árabe. Esse contato se deu de duas formas:
através da invasão moura da Península Ibérica, em 711, resultado da expansão muçulmana,
e das cruzadas medievais, resposta da cristandade à ocupação dos lugares
sagrados pelo islamismo. O resultado desse contato, forçado ou não, foi o
aumento da produção agrícola na Europa devido à introdução de novas técnicas e
novos instrumentos pelos árabes.
A partir das novas técnicas (sistema
de três campos, rodízio de culturas, moagem do grão em moinhos de vento ou d’água)
e instrumentos (arado de ferro, coalheira), pela primeira vez a Europa medieval
produz excedente de alimentos, o que gera a volta do comércio terrestre e da vida
urbana, através dos burgos. As feiras de troca são o elo entre a ausência de
comércio e os burgos. Esse novo contexto gera novas classes sociais, como a
burguesia, responsável pela atividade comercial e a administração dos burgos, e
os ofícios, pelos serviços manuais. Gera também uma maior necessidade de
segurança para que os burgueses possam realizar o comércio.
O renascimento das cidades é um
acontecimento intrinsecamente vinculado à volta do comércio. As cidades
medievais, que por terem nascido em torno dos muros de antigos castelos feudais
receberam a denominação de burgos, eram
cidades fortificadas onde se realizava o comércio terrestre europeu antes da
expansão marítima, constituindo-se em verdadeiros centros, além de oferecerem serviços, as corporações de ofícios,
que prestavam trabalhos manuais: artesãos, sapateiros, marceneiros, ferreiros,
alfaiates. A origem dos burgos são as feiras de trocas que, a partir do século
IX, reiniciaram a atividade comercial na Europa.
O comércio era considerado um pecado,
o chamado pecado da usura, pois o
homem deveria ganhar o pão com o suor do seu rosto e não com o “lucro fácil”
obtido pela compra e venda de mercadorias.
A insegurança era a regra para quem se
arriscava a fazer o comércio terrestre na Europa do século XIV; dentro de um
feudo ou de um burgo havia segurança, mas nos deslocamentos, devido à ausência
de um poder central e da existência de grupos que viviam de assaltos, a
insegurança era total. Por isso, os burgueses defendiam a necessidade da
formação de Estados Nacionais, com um poder centralizado que formasse um
exército nacional e garantisse a segurança pública.
II.
A Aliança rei-burguesia: o Estado em nome do comércio, o rei em nome do Estado
O ressurgimento do comércio no plano
econômico forçou o surgimento do estado moderno no plano político, pois a
estrutura do sistema feudal dificultava a circulação das mercadorias. A
centralização do poder foi instrumentalizada nas monarquias nacionais, mas esse
fenômeno foi forçado pela ascensão da burguesia e pela importância que adquiriu
a atividade comercial no decorrer da Baixa Idade Média. Esse comércio gerador da
modernidade teria seu ápice nas Grandes Descobertas Marítimas, na formação
da rota para as Índias e na descoberta de novos continentes.
A
burguesia precisava de algo maior, que garantisse a sua segurança nos
deslocamentos necessários para a prática do comércio terrestre. Havia também a
necessidade de concentrar os impostos a fim de investir na navegação. A
realização das Grandes Navegações era um investimento alto e arriscado demais
para apenas um burguês ou uma associação (Hansa).
Havia, enfim, a necessidade de existência do Estado, um Estado com o poder centralizado.
O critério usado para viabilizar o Estado seria a tradição, ou seja, a ideia de
rei. O rei concentraria os impostos e investiria na navegação e na formação de
um exército nacional. É justamente por essas necessidades e interesses que se
dá à aliança formadora do Estado moderno, a aliança rei-burguesia.
As grandes
descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, responsáveis pela descoberta da
América, da costa da África e do extremo oriente, foram um fruto do Estado
moderno. A expansão europeia do início da Idade Moderna foi motivada pelo
desejo da burguesia de ampliar a sua atividade econômica e pela vontade da
Igreja de expandir a fé católica no “novo mundo”, catequizando os nativos da
América, da África e da Ásia.
Portugal foi
o pioneiro das grandes navegações marítimas por vários motivos: a sua
privilegiada posição geográfica (banhado pelo oceano Atlântico), sua precoce
centralização política, a ascensão da sua burguesia mercantil aliada à Dinastia
de Avis e a existência da Escola de Sagres. A Escola de Sagres era a única
escola de navegação da Europa moderna, uma escola dedicada à formação de
navegadores e ao desenvolvimento das técnicas de navegação.
No
início da Idade Moderna, o Atlântico era praticamente desconhecido, pois,
devido aos riscos, a sua exploração não atraía investimentos particulares. A
expansão para esse oceano foi uma iniciativa do Estado português, único agente
capaz de investir grandes recursos – provenientes da arrecadação de impostos em
escala nacional – e assimilar possíveis prejuízos. Por isso, a importância da
precoce centralização política de Portugal, enquanto os demais países europeus
viviam o modelo típico de feudalismo, para seu pioneirismo na expansão
ultramarina. Os Senhores Feudais ibéricos, visando a garantir as conquistas
territoriais da retomada cristã, abdicam do seu poder local e transferem poder
ao rei de Borgonha, utilizando a tradição como elemento de criação da
nacionalidade.
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A nobreza medieval se manteve como elite nos Estados Modernos, uma elite ligada a guerra ou a terra. |
Embora tivesse sua origem ligada aos interesses mercantis, sendo uma aspiração e uma construção da burguesia, o Estado moderno não rompeu com a nobreza, na medida em que manteve os seus privilégios. Essa aparente contradição é explicada pela impossibilidade burguesa de se impor como casta dominante no período, em um mundo em que os valores vigentes eram da nobreza (tradição, terra, religião, guerra) e sua atividade era considerada pecado (usura). À burguesia resta garantir a realização do comercio e a segurança do seu patrimônio e da sua vida. O rei poderia fornecer a garantia da manutenção das suas propriedades, o que não acontecia no mundo feudal, no qual as cidades burguesas, principalmente as judiarias e as mourarias, eram constantemente invadidas aos gritos de ‘conversão ou morte’.
Concomitante ao crescimento dos burgueses, das
cidades e do comércio, ocorreu uma crise no campo, que teve como consequência o
desmoronamento das relações servis, o enfraquecimento dos Senhores Feudais e a
possibilidade de centralizar o poder na figura real. A centralização só foi
possível porque ocorreu o enfraquecimento da nobreza feudal e dos seus
exércitos particulares.
III.
Idioma comum, território definido, soberania real e exército permanente: o Estado
moderno apresenta suas armas
A
Idade moderna é caracterizada como a transição do feudalismo para o capitalismo,
transição iniciada com a expansão comercial, a partir do século XI, quando a
terra foi deixando de ser a única fonte de riqueza, desestruturando o sistema
feudal. Enquanto isso, a burguesia adquiria crescente riqueza e buscava ampliar
seus lucros através de uma nova organização política, sem as constantes guerras
promovidas pela nobreza feudal, sem as inúmeras moedas regionais e sem os
incontáveis impostos individualmente cobrados pelos senhores feudais, todos esses
fatores que atrapalhavam a realização do comércio. A solução encontrada foi
fortalecer a autoridade do rei, através da formação das monarquias nacionais.
O processo histórico que levou ao
surgimento do Estado moderno com governos nacionais centralizados representa,
ao mesmo tempo, uma oposição aos regionalismos dos feudos (imunidade) e
ao universalismo da Igreja católica (ideia de cristandade ocidental). O estado moderno caracteriza-se pela ideia
de idioma comum, território definido, soberania real (no lugar da suserania
medieval) e exército permanente.
Maquiavel,
precursor da teoria política do Estado Moderno e principal teórico do
absolutismo, pregou a construção de um Estado forte, laico, dirigido de forma
absolutista por um príncipe dotado de inteligência e de uma moral própria,
individual, e não uma moral pública: “o homem que queira em tudo agir como bom
acabará arruinando-se em meio a tantos que não são bons. Daí porque o príncipe
deve aprender a não ser bom”.
A Monarquia Absolutista,
concentração dos poderes do Estado nas mãos do Rei, tinha sua legitimidade
baseada no Direito Divino dos Reis. A
Igreja católica defendia a ideia de que o rei havia sido “tocado por Deus”,
escolhido por Deus para ser o seu representante aqui na terra, por isso a sua
figura era sagrada; por isso ele tinha o “direito divino” de ser rei. Na época,
acreditava-se, inclusive, que os reis faziam curas e milagres.
O Estado Absolutista Moderno
finaliza o feudalismo e permite a acumulação de capital, a partir das práticas
mercantilistas, geradoras do sistema capitalista. O absolutismo estabelece a
nobreza como classe privilegiada e os seus valores como os valores hegemônicos
da sociedade absolutista, mas, ao mesmo tempo, favorece economicamente a
burguesia, pois a ela era destinado pelo monarca o monopólio da atividade mais
lucrativa da época, o comércio marítimo. O monarca determinava, além das
questões econômicas, as questões militares, política e religiosas, concentrando
em suas mãos todo o poder do reino (“O Estado sou eu!”).
Na mesma medida que a centralização favoreceu o
estabelecimento das práticas mercantilistas, a montagem do antigo sistema
colonial e o acumulo de capitais da burguesia mercantil; as grandes descobertas marítimas –
ampliação do comércio – e o imperialismo europeu do século XVI, com a anexação
e o domínio de novos territórios para a exploração de recursos naturais e a
instalação de entrepostos comerciais na costa da África, América e extremo
oriente, ampliou mercantilismo europeu ao torná-lo mundial. O grande
crescimento econômico da Europa ocorreu devido à possibilidade de realizar o
chamado comércio triangular, entre
América, África e Ásia. Outro fator positivo para a economia europeia foi a
entrada de metais preciosos no continente, permitindo o acúmulo de riquezas e
cunhagem de moedas nacionais.
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